Segundo a OMS, «a saúde mental é um estado de bem-estar mental, que permite à pessoa lidar com situações de vida stressantes, identificar as suas capacidades, aprender e trabalhar bem, assim como contribuir para a sua comunidade».
A tradução é livre, mas a liberdade individual também é o objectivo final de qualquer assunto que envolva a saúde mental. No entanto, este objectivo é frequentemente perdido nos debates actuais, transformando o conceito de saúde mental numa falácia, que, no fundo, a perturba. São várias as razões para que isto aconteça, frequentemente assentes em sistemas políticos, financeiros ou mesmo religiosos. Analisar cada um destes sistemas seria um exercício importante, mas igualmente extenso. O que pretendo aqui é focar-me nas dinâmicas mais básicas do nosso quotidiano, mais concretamente no tipo de comportamentos que apelidamos de absurdos, bizarros, incompreensíveis. Ao escaparem a uma compreensão mais imediata, fazemos aquilo para que o cérebro humano foi treinado ao longo da evolução humana: catalogar para tornar o estranho em algo familiar e, assim, reduzir a sensação de perigo, geradora do stress que perturba a homeostasia do organismo. Já todos ouvimos expressões como doença mental, perturbação mental ou mesmo psicopatologia. Todas elas formas de abordar a catalogação do desconhecido, apresentam-se como conjuntos de sintomas aos quais é dado um nome: depressão major, bipolaridade, esquizofrenia, etc. Da mesma forma que uma cabeça, dois braços, um tronco e duas pernas podem ser uma pessoa: todas as pessoas, portanto, pessoa nenhuma. Acresce ainda outro problema, consequente dessa homeostasia. É que esta é pessoal e não interpessoal, ou seja, uma procura constante de um equilíbrio individual, que só pode ser alcançado na relação interpessoal. Eis-nos chegados ao paradoxo da vivência quotidiana. Ou a uma explicação simplificada da dificuldade de viver. Nem todas as formas de sentir e viver são aceites pela sociedade e tão pouco como saúde mental. O problema é que quando há muitas pessoas a pensar o mesmo, corremos o risco de criar algo tido como verdade, mesmo que não o seja. Nada surpreendente, portanto, que os manuais de diagnóstico de perturbações mentais sejam estatísticos.
Ao longo da minha carreira de psicólogo, tenho tido a oportunidade de observar um denominador comum no mal-estar mental: a pessoa não foi alvo de um interesse genuíno. Não foi olhada com atenção, intenção e, mais importante do que tudo, sem ser enformada ou rotulada. As razões para não conseguirmos olhar o outro são mais do que muitas e não pretendo organizar um tribunal para atribuição de culpas. Afinal, o que está em causa é perceber o fenómeno, não catalogando uma pessoa de agressora e outra de agredida. Seria um exercício tão falacioso como o que estou aqui a tentar esclarecer. No entanto, há um ponto crítico: a capacidade de olhar para o outro como diferente de mim implica, em primeiro lugar, conhecer-me a mim próprio. Mas, para me conhecer a mim próprio, eu tive de ser, primeiro do que tudo, alvo do interesse de uma pessoa significativa. Podemos, assim, vislumbrar uma transmissão muda e normalizada entre gerações, que perpetua esse anonimato entre conhecidos. Se não me ensinaram a estar atento a mim próprio, e a entender o que se passa comigo, então como posso identificar e valorizar isso noutra pessoa?
Todo o mal-estar começa com uma queixa, comunicada de forma mais ou menos directa. Se essa queixa não for ouvida e atendida, vamos acumulando experiências interpessoais negativas. Com o passar do tempo, essas queixas serão, provavelmente, cada vez mais proeminentes, pois a necessidade também se adensa, aumentando o nosso mal-estar e amplificando a estranheza e a incompreensão dos outros. Isto pode afastar-nos cada vez mais do contacto com a realidade, deixando-nos enclausurados numa ficção, numa forma de criar uma realidade alternativa, que possa, ainda que de forma ilusória, responder às necessidades para as quais não encontrámos cuidados no meio envolvente.
O que acabei de tentar descrever é o resumo do resumo, e estou ciente de que arrisco uma sobre-simplificação. Mas antes das coisas complexas, estão as coisas simples e, no que toca a relações humanas, a base pertence às coisas simples. Também merece o risco tentar trazer ao debate público duas premissas maiúsculas da saúde mental:
A saúde mental só se alcança através das relações interpessoais.
e
Ninguém sabe mais sobre uma pessoa do que a própria.
Voltando ao início: para que exista esse tal estado de bem-estar mental, para que alguém possa lidar com situações de vida stressantes, para que alguém possa identificar (e aplicar) as suas capacidades, aprender e trabalhar bem, assim como contribuir para a sua comunidade, é impreterível que tenha sido alvo da curiosidade de um outro significativo, para que esse interesse lhe possa servir de espelho para se conhecer a si mesmo, e que esse auto-conhecimento lhe permita pensar a diferença entre si e os demais. Que, ao aperceber-se das diferenças, tenha curiosidade em conhecer o outro. Assim, poderá ser uma pessoa significativa para alguém, espelhando-o.